A infância é o chão no qual pisamos a vida inteira! (Lia Luft)

Construindo pontes (escultura de Lorenzo Quinn)

Em texto anterior, YPÊ número 24, sobre “Psicanálise e Educação de crianças pequenas em tempos de pandemia” refleti sobre os impactos que aquele fatídico 2020 causou no início do ano letivo em crianças e adolescentes devido à explosão da pandemia causada pelo corona-vírus. Quanta falta fez a escola e o quanto os educadores ainda lidam com seus reflexos no comportamento e aprendizagem dos alunos até os dias de hoje!

Como psicóloga clínica e escolar volto trazendo reflexões sobre a importância de “um olhar psicanalítico” sobre as questões educacionais e demais elementos envolvidos no complexo e desafiador espaço escolar. De que olhar eu me refiro?

Com o olhar para a infância e para os processos de constituição do sujeito, a psicanálise contribui ampliando as reflexões e ações sobre o processo educativo. Mas de que maneira utilizar a teoria psicanalítica como ferramenta que favoreça a maior compreensão da singularidade de todos que compõe o espaço escolar: educadores, alunos e famílias?

Espero levantar questionamentos sobre o tema, como também, dividir alguma experiência como psicóloga escolar.

Estamos vivendo num mundo globalizado, tecnológico e tecnicista, o que implica considerarmos que o contexto atual em que trabalha um profissional da educação não é o mesmo de anos atrás. Também é fato que hoje todas as crianças e adolescentes independentemente da sua condição física, cognitiva, familiar, social, entre outras, devem estar incluídos, o que caracteriza a escola como um espaço da diversidade implicando em maiores dificuldades e desafios. Relatos sobre apatia, desinteresse e violência banalizada são comuns, exigindo uma ampliação do papel do educador para além de um transmissor de conhecimentos.

Dentro desse viés a psicologia na escola contribui para o enriquecimento no modo de pensar e praticar a educação através de uma visão mais compassiva e profunda das pessoas que envolvem o processo escolar: alunos-professores-famílias e a psicanálise “ensina” os educadores a ter mais respeito pela integridade e essência do outro. Assim, não há mais espaço para enquadramentos, autoritarismo, persuasão e normatizações dos conteúdos e comportamentos de crianças e adolescentes. Esse diálogo não tem sido fácil pois, a escola muitas vezes, tem o desejo ou compromisso social de buscar o aproveitamento escolar não conseguindo olhar para a individualidade e psiquismo dos alunos. Tais desencontros e encontros entre psicologia e educação tem sido intensamente debatidos por estudiosos/pesquisadores e muitos são os trabalhos sobre o tema na atualidade. (PEREIRA, A.K.; DEAKIN, E.K.; NUNES, M.L.T., 2021).

O psicólogo escolar trabalha na direção de buscar uma comunicação construtiva entre todos, principalmente em situações de conflitos em que questões éticas devem ser consideradas, porém, os sentimentos ali envolvidos precisam ser compreendidos e nomeados, pois olhar para o outro de forma mais profunda e empática cria conexões entre as pessoas. Não se faz educação sem conexão!

Ao ingressar na escola (2007) pude observar as questões das relações interpessoais direcionando meu olhar para as singularidades e individualidades de todos, particularmente das crianças e adolescentes e a teoria de Winnicott me auxiliou a perceber que o ambiente e as pessoas da escola precisavam estabelecer uma melhor comunicação e proximidade afetiva para que efetivas e saudáveis relações interpessoais fossem possíveis pois, somente dessa forma haveria um bom desenvolvimento de todos.  Essa teoria nos possibilita o entendimento do papel da escola, todavia não é possível, neste momento, uma análise mais profunda da concepção de Escola a partir do pensamento winnicotiano.

Winnicott diferencia-se dos demais autores da psicanálise, pois é o primeiro a propor a concepção de uma teoria do Amadurecimento, em que todos nós partimos de uma tendência inata à integração, mas dependemos integralmente do ambiente para que ela possa acontecer desde os primórdios da vida. Nas palavras do próprio autor: “Pode ser útil postular que o ambiente suficientemente bom começa com um alto grau de adaptação às necessidades do bebê. Geralmente a mãe é capaz de provê-lo, por causa do estado especial em que se encontra o qual denominei “preocupação materna primária”… a adaptação vai diminuindo de acordo com a necessidade crescente do bebê tem de experimentar reações à frustração…é somente sobre uma continuidade no existir que o sentido do self, de se sentir real, de ser, pode finalmente se estabelecer como uma característica da personalidade do indivíduo”. (WINNICOTT, 1896/1971, p.22).

Fica evidente ao longo de sua obra a importância do ambiente na sustentação psíquica da vida do indivíduo. Dos ambientes que crianças e adolescentes vivem, boa parte do tempo é na Escola. Logo, penso que para um crescimento maturacional saudável, o ambiente da escola também deve ser considerado como fator estruturante para o Amadurecimento. Obviamente, Winnicott nos ensina que devemos observá-lo e compreendê-lo tanto nas suas potencialidades como fragilidades, logo no início da nossa atuação.

A esse respeito diz Winnicott (2017) que a escola suplementa e amplia as funções do lar suficientemente bom, dando continuidade ao trabalho de socialização que tem início na família. Daí a importância de relações cordiais e interessadas do professor com o aluno para a continuidade do sentimento de confiabilidade. A qualidade da atenção que o professor oferece ao aluno com sua disponibilidade afetiva através da sua presença é necessária e jamais será substituída por um atendimento frio e impessoal.

Assim o autor comenta sobre a função da escola: “ uma delas é o fornecimento, durante algumas horas diárias, de uma atmosfera emocional que não é a tão densamente carregada do lar. Isso propicia à criança uma pausa para o desenvolvimento pessoal. […] A escola, que é um apoio, mas não uma alternativa para o lar, pode fornecer oportunidades para uma profunda relação pessoal com outras pessoas que não os pais. Essas oportunidades apresentam-se na pessoa das professoras e das outras crianças e no estabelecimento de uma tolerante, mas sólida, estrutura em que as experiências podem ser realizadas (WINNICOTT, 2001, p.217).

Dentro desta concepção, penso que a escola poderia receber os alunos de maneira equivalente ao que Winnicott chamou de “mãe-suficientemente-boa,”que seria uma adaptação às necessidades do aluno que lhe permita um desenvolvimento saudável. Melhor dizendo, que o conhecimento transmitido pelo professor seja significativo para o aluno e com ele seja construído.

Assim, a teoria do Amadurecimento nos permite pensar numa educação que contemple as características e necessidades de cada fase. Segundo essa teoria winnicottiana a educação não deve superprivilegiar o saber (intelectual) em contraposição à experiência. O sistema educacional deve favorecer a criatividade ao invés de gerar submissão. A educação em Winnicott não é submissão, segundo suas palavras: “a obediência traz recompensas imediatas e os adultos confundem, com excessiva facilidade, obediência com crescimento” (WINNICOTT, 1963/1983, p. 96).

Numa linguagem winnicottiana, o aluno que aprende bem, não é aquele que aprende porque é submisso, mas sim porque teve seu “gesto espontâneo” acolhido. Os gestos espontâneos são definidos pelo autor como o verdadeiro self em ação que vai se constituindo como o resultado do repetido êxito da mãe em reconhecer o gesto espontâneo do bebê. (ABRAM, 1996).  Entendendo melhor esse conceito no âmbito escolar, a presença facilitadora do professor que valorize a curiosidade, o interesse, as manifestações espontâneas e criativas do seu aluno parece contribuir para o processo de amadurecimento da criança. O professor que trabalha o lúdico tende a contribuir neste sentido.

Entre muitas idéias do autor que podem propiciar transformações na maneira de pensar a educação, cito duas que considero lindas:

Esta ideia me remete às crianças com déficit de atenção e questiono: o que nos diria Winnicott sobre essa necessidade tão presente hoje, inclusive nas escolas, de se ”patologizar” crianças com laudos de transtornos dos mais diversos e que são medicadas precocemente e, mais perigoso ainda, sem qualquer observação mais apurada da sua subjetividade e do ambiente em que está inserida?

Fica evidente em sua obra a importância dos educadores “escutarem” e reconhecerem os sentimentos de crianças e adolescentes tentando compreender seus conflitos conscientes e inconscientes que tanto impactam a vida da criança, como seu desempenho escolar (intelectual).

Nas palavras de Winnicott (1968/1997, p. 64): “É estranho, mas verdadeiro, que as pessoas precisam ser lembradas de que os sentimentos são importantes. Nossos sentimentos são uma parte tão grande de nós, e, no entanto, quando se trata de sentimentos dos outros nós facilmente caímos fora e fingimos que está tudo bem”.

Venho constatando essa afirmação ao deparar, com muita frequência, com crianças que por trás da queixa de dificuldade de aprendizagem ou comportamento revelam problemas de cunho emocional e afetivo, como também, com professores incapazes de se aproximarem da realidade subjetiva dos alunos, de serem acolhedores, empáticos e sensíveis às suas necessidades. Percebo que sem essas características dificilmente o vínculo de confiança é construído e, tampouco, a base da empatia é despertada – condições necessárias para o trabalho docente!

Segundo Almeida (2020), o olhar singular com que o psicanalista observa e escuta seus pacientes precisa ser levado para o espaço escolar com o objetivo de ajudar os educadores a se olharem “de dentro” para conhecerem suas fragilidades e suas grandezas, bem como, a criança que existe dentro de cada um. Considero que assim poderão ser capazes de compreender a criança sensível que existe nos seus alunos e oferecer o olhar cuidadoso, ético, respeitoso e interessado que tanto crianças e adolescentes dependem para a continuidade do processo de Amadurecimento.

Nesse ponto, é importante retomar Freud, o pai da psicanálise, que ao apontar a existência de um inconsciente exercendo uma enorme influência sobre nossas ações, motivações, atitudes, sentimentos e comportamentos que nos escapa do controle racional, somos levados a nos olhar de dentro, nos entendermos para buscarmos mudanças e qualidade de vida mental (ALMEIDA,2020).

Para Kupfer (2007) o psicanalista, em razão de suas noções sobre o inconsciente, pode ver que “ os adultos transmitem às crianças muito mais do que supõem e não tem consciência de como o transmitem”. Essa afirmativa me faz pensar na seriedade e responsabilidade dos educadores que tem em suas mãos os cuidados de uma criança!

No cotidiano escolar são muitas as oportunidades de intervenções com os professores no sentido de investigar com eles “o dentro de cada um” diante de uma situação difícil e/ou desafiadora. Podemos iniciar com simples perguntas como:  “o que a criança/aluno desperta nos professores? O que essa criança oferece? O que lhe falta? Porque tanta dificuldade para lhe ensinar algo? ” Entre muitos outros questionamentos que se caracterizam por momentos que ampliam o olhar tanto para o aluno como para a  conduta pessoal e prática pedagógica do professor. Dessa forma, podem ocorrer mudanças nas práticas e condutas considerando a realidade subjetiva dos alunos afastando assim, qualquer possibilidade de uma atividade pedagógica mecanizada, fria e distante.

É importante destacar que não se trata de praticarmos psicoterapia clinica no espaço escolar, mas é possível praticarmos uma abordagem breve e focal de atendimento da queixa escolar inspirada na prática das Consultas Terapêuticas de Winnicott (1984) que favorece a busca de informações entre pais, criança e escola enfocando os aspectos escolares, pois que a interação família-escola-criança possibilita a compreensão, integração e possibilidades de intervenção. Sugiro a leitura do capítulo “Escutando e atendendo crianças na escola: múltiplos olhares e distintas possibilidades” que consta no livro Psicoterapia na Infância – teoria e técnica na abordagem psicanalítica que traz modelos de práticas para o psicólogo escolar nessa abordagem acima citada.

Concluindo, sem jamais esgotar as reflexões sobre um tema por demais inovador e estimulante, cito Freud que apesar de não ter se ocupado de pesquisas sobre o diálogo entre a psicanálise e educação, referia-se a esse tema como muito importante e talvez, o trabalho mais relevante da psicanálise. Ele era muito esperançoso e otimista quanto às aplicações da psicanálise na educação no futuro. (ALMEIDA, 2020)

E o futuro chegou!

Com as crianças e adolescentes se mantendo dependentes de adultos sensíveis e capazes de proporcionar um ambiente emocional estável e, em nosso caso, um espaço escolar plenamente acolhedor e emocionalmente equilibrado em que a aceitação e a singularidade de cada um deem o passo inicial para uma ação educativa eficaz e livre de preconceitos.

Em outras palavras, uma escola VIVA que trabalhe para despertar o potencial criativo que existe em cada aluno. É importante destacar que muitas crianças encontrarão na escola a última chance para desenvolverem suas aptidões e essas oportunidades não podem ser desperdiçadas pelos educadores.

Finalizo, acreditando nesse diálogo promissor entre educação e psicanálise: assim como a psicanálise tem o poder de nos despertar e está em constante movimento, tendo a imaginar o quanto uma educação ancorada pelas suas descobertas tornaria o fazer docente um trabalho VIVO, preenchido de descobertas e alegrias e também em constante movimento.

Esse movimento tão criativo da vida!

Referências Bibliográficas:

ABRAM, J. A Linguagem de Winnicott – Dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Tradução: Marcelo Del Grande da Silva. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.

ALMEIDA, A.P. Intervenção psicanalítica na escola. São Paulo: Zagodoni, 2020.

KUPFER, M.C. A subversão psicanalítica do debate indivíduo-cultura: consequências para as psicologias. São Paulo: Casa do psicólogo, 2007.                    

WINNICOTT, D. O efeito da perda sobre as crianças (1968). In: Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas,1997.

____________ Introdução primária à realidade externa: os estágios iniciais (1948). In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2021.

____________O conceito de indivíduo saudável (1967). In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2021.

____________ A criança e o seu mundo. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC,2017. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2021.

 ____________ Consultas Terapêuticas. Rio de Janeiro: Imago, 1984.

Por Maria Aparecida Abbs da Fonseca e Castro. Pedagoga. Psicóloga Clínica e Escolar. Especialista em teorias e técnicas psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro da diretoria e supervisora do IEP (CRP 06/11126). E-mail: psico_cida@hotmail.com.br

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