Eu sei. Há muito tempo que não nos encontramos. Você não mudou nem um pouco. É como se eu estivesse, agora, olhando para uma foto antiga sua. Estática, congelada no tempo. No entanto, bastou uma pergunta feita a mim, simples e bem direta, e me percebi sendo conduzido novamente aos caminhos que iluminamos juntos: “Por que você escolheu a psicanálise?” Rapidamente, em questão de segundos, me vi de frente com a nossa velha amiga, a Escuridão; impecavelmente imprecisa e disforme. Nunca havia pensado algo a respeito com afinco. Por que, Psicanálise, acabei escolhendo você?
Não sei por onde começar. Você tem alguma ideia? Engraçado, achei que seria fácil estabelecer um ponto de origem. É isso! Talvez esteja exatamente aqui. Não faço ideia de quando meu interesse pela mente humana e suas circunstâncias começou. Me lembro, vagamente, de folhear revistas e me deter em assuntos que passaram a despertar esse interesse ainda pequeno, porém de uma perceptível sutileza. Psicologia, cérebro humano, ação de medicamentos, neurotransmissores, experimentos, pesquisas e mais pesquisas.
Também, parte desses primeiros contatos devo a uma colega, hoje também psicóloga e que acabou conhecendo você. Não sei se você se recorda. Ela carregava consigo um livro de “Psicologia Geral e Experimental”, já bem abatido pelo tempo. Mesmo sendo grosso demais e com letras demasiadamente pequenas para o meu pequeno olhar, passei parte de uma manhã pré-vestibular com os olhos pregados à martelo naquelas páginas amareladas. Veja você, então, Psicanálise, como você, neste início, era para mim uma figurante, apenas. Não chegava nem a aspirante à coadjuvante. Não era alguém que eu almejasse conhecer.
Sei, plenamente. Você não precisa dizer nada. Psicologia não foi minha primeira opção, e minha distância até você, a qual já era consideravelmente extensa, se tornou astronômica. De súbito, me vi dentro de uma sala de aula de Direito e, com a mesma velocidade, descobri que acabei me tornando uma máquina de decorar, e só. Minha curiosidade executou uma baliza perfeita e acabou estacionada entre aquelas revistas e aquele livro velho e desgastado. Foram dois anos e mais um pouco tentando encontrar um interesse vivo que, ali, jamais seria cultivado. Assinei a papelada e abandonei o curso.
Você deve saber, mas não sei bem como é essa experiência para quem já a viveu. Abandonar um investimento dessa dimensão gerou, para mim, à primeira vista, um vazio angustiante. Senti como se não tivesse nada. Uma casa abandonada. Não havia ninguém. Estranho, não? Estranho, porém um tanto libertador. Simultaneamente, foi como uma grande rodovia sendo inaugurada com o meu nome. E além de onde a minha vista era capaz de enxergar, algo me atraía, porém me lançava muita dúvida, provocando um entusiasmo agradável e de delicada apreensão.
Não sei se você sabe, mas você, Psicanálise, não marcava presença alguma em minha vida imediata no início da faculdade. Apesar da incerteza empolgante que me impulsionava, tinha plena certeza de que me tornaria pesquisador experimental. Foi por isso que, precipitadamente, talvez, ingressei no Laboratório de Neurobiologia da faculdade. Meu interesse na área permanece, mas tenho sonhos com ratos de laboratório até hoje. Ao revisarem meu primeiro esboço do projeto encarregado a mim, me disseram que a minha escrita não devia ser tão “enfeitada” como estava. Me faltava objetividade e isenção.
Por favor, não pense que levei isso a mal. Entendi muito bem. Entretanto, acabei abolindo essa via mais… descomprometida, por assim dizer, da minha escrita. Isto é, aboli até o exato momento que a primeira palavra desse texto tomou forma. Mais uma vez, por favor, não sei se você entendeu errado, mas não falo isso com desprezo. Admiro, com fervor, quem se compromete com o rigor científico. Espero que você não aprecie mal esta minha última exposição. Mas, pensando bem… será que você se importa? Que seja. Retornemos, então.
Sim, eu sei. A primeira vez que nos encontramos não teve nada de “amor à primeira vista”. Você me pareceu tão antiquada e prepotente. Apresentando conceitos os quais já comemoraram aniversários de mais de cem anos. Quantas ideias absurdas! Não via sentido nenhum. E tudo o que você fez foi ficar aí, imóvel, com essa cara pseudocientífica e de boca fechada. Por que, Psicanálise, o esforço de conhecer e compreender você é sempre meu? Por que você, nunca, me explicou nada direito? Comecei esse texto com uma pergunta; agora tenho várias e nenhuma resposta. Típico.
Não sei se você se ofendeu, mas peço desculpas novamente. Minha arrogância está sempre armada e apertou o gatilho sem você proferir a mim uma única palavra sequer. Não é fácil, contudo, lidar com você. Você é complexa, incompreensível, intrincada, obscura, confusa, labiríntica, hermética, enigmática e pessimista. Nada mais natural do que eu desejar que você seja minha. Que você confirme minha onipotente visão de mundo e seja como eu bem entender. Bem, agora não importa. Porque, mesmo assim, Psicanálise, você me conhece, continuei me encontrando com você.
Não sei explicar, apropriadamente, como e quando a categórica guinada em sua direção ficou se desenrolou. Mas foi em um dia comum de aula que, inesperadamente, lá estavam, Fernando Pessoa e Freud, lado a lado. Isso mesmo, o poeta e o médico polêmico que a apresentou para o mundo. Estavam lá, Poesia e você, Psicanálise. Entrelaçados. Vocês estavam falando sobre o mesmo fato, fenômeno, coisa, sei lá, através de concepções diferentes! Até hoje não sei dizer como esse slide de PowerPoint me afetou tanto. Só sei que, com certeza, queria saber mais sobre você. Precisava saber.
Não tinha ideia de que, depois do médico, você se encontrou com tantos pensadores. Se desencontrou com muitos, também. Fiquei deslumbrado ao saber que, junto à Melanie Klein (1932) você desenvolveu uma técnica que possibilitou o atendimento de crianças. O “brincar” passou a ser essencial, não somente por ser o âmbito clínico em que a criança projeta seu mundo interno, mas também por revelar os aspectos psicóticos da mente humana, os quais, até então, sugeriam ser inalcançáveis. É admirável saber que a psicanalista inglesa encontrou associações estreitas entre os primeiros meses da vida de um bebê e as psicoses que se manifestam, geralmente, na vida adulta (Klein, 1946).
Aprendi que você errou, evoluiu, errou de novo, e se transformou muito após conhecer mentes de profundidade ímpar, como a de Wilfred Bion. Seja sorte ou infortúnio, apenas sei que o que antes já era complicado, acabou se tornando inconcebível. Literalmente. Como conceber uma dimensão da realidade que nos é inacessível? Isso é o que Bion (1973) e você chamaram de o “O da experiência”, não é? O inexprimível, o inefável. Não é possível alcançar “O”. Fundamentalmente intangível, só é possível vivê-lo. Sei que é possível, entretanto, assimilar os elementos em potencial que se ampliam e florescem deste paradoxo que tudo contém, mas está vazio para nós.
Foi assim que vocês dois me colocaram nesse gracioso movimento, abrindo meus olhos para a verdade de cada momento que vivo. Sempre pensei que estivesse sempre aqui, comigo, muito bem definida, obrigado. Hoje a contemplo a um passo de distância na minha frente. Compreendo que, no exato momento em que a agarro, apaixonado, se torna pré-história. Nunca me dispus da verdade; apenas estive em seu rumo e contíguo à diferença.
Considerar esse movimento interminável rumo ao desconhecido foi um golpe duro, mas tomei de peito aberto e passei a saborear, como nunca, os deleites que a incerteza pode oferecer. Um pouco, na verdade. Confesso que frequentemente me sinto aflito e ameaçado, em determinados níveis, perante o que não conheço. Sei que sou limitado e humano. Quero respostas prontas que me acalentem e me envolvam como um afável enlace materno.
Diante disso, creio ser verdade que Bion (1973) foi genial ao conceituar a capacidade negativa junto a você. Muitas vezes é penoso demais suportar a incerteza, confusão e dúvida que perpassam pela minha existência sem serem convidadas. Dimensionar, então, essa específica condição de sobreviver em meio ao caos, perseverar mesmo estando perdido na escuridão, sem se precipitar formulando significados ou recorrer a interpretações obsoletas, não foi só uma grande contribuição para a clínica moderna, mas também bem apropriada para essa nossa experiência que é humana. Às vezes, temos que apenas esperar.
É dessa maneira que, apesar de tudo, sei que prosseguiremos juntos. Sem muita orientação, com muita vontade, no terreno pantanoso e nebuloso da indefinição, como acredito ter sido, após me encontrar com você agora, a minha trajetória até aqui. Somente com a frágil chama da intuição iluminando o caminho, e o ímpeto por conhecer o que é novo me motivando a avançar. Seguindo, simplesmente, sem saber.
Sim, Psicanálise. Acredito que, nesse momento, após ordenar todas essas palavras com você, sei por que escolhi você. Escolhi você porque você é fascinante. Apesar de você, primeiramente, parecer um imenso desaforo, discretamente, também, entregou um lampejo tímido. Assim, ao atravessar o reino soberano das verdades rasas, encontrei o seu brilho. Sei que você está se sofisticando e desenvolvendo para todo o sempre. Como um ourives lapidando a mais preciosa pedra em um trabalho interminável, e em cada faceta reflete-se a contribuição de cada pensador. Você é eternamente misteriosa. Escolhi você porque quanto mais a conheço, mais quero saber sobre você, mesmo ciente dessa busca sem fim.
Você está tão diferente, agora, Psicanálise. É verdade. Cada encontro é um encontro, e todo encontro contém o potencial desconhecido que nos transforma (Bion, 1973). Mas acho que já falei bastante. Me fale sobre você. Você já esteve nas praias do inferno? Em quais oceanos da emoção você já navegou? O que existe além do horizonte de eventos do inconsciente? O que há, de fato, nas profundezas mais remotas da nossa mente?
BION, W.R. Atenção e interpretação: uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos. Rio de Janeiro, Imago, 1973.
KLEIN, M. (1926) Psicanálise da Criança. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1981.
KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In Obras Completas de M. Klein.trad. B. Mandelbaum. Rio: Imago, 1991
Gravura:
Sagittarius A, o supermassivo buraco negro que se encontra no centro da Via Láctea.
European Southern Observatory (ESO)
https://www.newscientist.com/article/2424508-new-view-of-our-galaxys-black-hole-reveals-a-swirling-magnetic-field
Acessado no dia 6 de junho de 2024.
Tiago Martins, psicólogo clínico formado pela USP de Ribeirão Preto. Pós-graduado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP-RP e pelo IEP-RP em Teorias e Técnicas Psicanalíticas. Membro do IEP-RP desde 2024 e integrante do Departamento Científico.