Em algum lugar, uma criança espera pelo telefonema do pai.
Só que esse pai não vai telefonar.
Em algum lugar, uma criança espera no portão o pai voltar do trabalho.
Mas esse pai também não vai voltar.
Em um outro lugar, uma criança olha outras crianças num parque com o pai e percebe que ela não tem um pai para levá-la ao parque.

LA AUSENCIA
Mª Angeles Bueno Campos
Categoria: Pintura
Técnica: Oleo

No Portal de Transparência do Registro Civil brasileiro, na página de pais ausentes, no período de 1 de janeiro de 2022 até 31 de dezembro de 2022, foram feitos 2.576.024 registros de nascimentos, sendo 165.201 sem o nome do pai. Esses dados revelam crianças cujas certidões não incluíram os nomes dos pais durante um ano, e isso não considera aqueles cujos registros contêm os nomes, porém sem a presença efetiva dos mesmos. Como a psicanálise tem olhado para esse fenômeno? Quantas vezes encontramos essa narrativa em nossos consultórios?

Em Totem e Tabu e o complexo de Édipo, Freud (1939[1934-38]/2003) trará a importante participação do pai que sustentam como núcleo a proibição de matar o totem e a proibição de se casar com a mulher do pai. Sobre a renúncia do instinto, Freud, explica que, por causa do princípio de realidade, uma instância chamada superego construída a partir do ego, que será crítica e proibidora se faz necessária. O superego, esse que é o sucessor e representante dos pais e tem sua origem no complexo de Édipo. Mas ainda assim, até por considerar o momento histórico, o pai não tinha muito mais envolvimento do que isso.

As teorias a respeito do desenvolvimento emocional seguiram dando maior importância à relação mãe-filho, considerando pouco o papel do pai (Bernardi, 2017). Winnicott é quem faz um furo – pequeno, mas significativo, para despressurizar essa atmosfera maternocêntrica quando traz a importância do ambiente na vida psíquica do sujeito. Será suficiente?

A presença do pai é fundamental para a construção da vida emocional saudável do sujeito. Para Winnicott (1982/1944), o vínculo com o pai poderá enriquecer a vida da criança de muitas maneiras. Na teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott (1960/2023) coloca a importância do ambiente de maneira particular em cada estágio e que o processo de amadurecimento só pode acontecer em um ambiente facilitador. Portanto, a falha terá repercussões diferentes dependendo de quando o pai se tornou ausente na vida do filho, pois, este é necessário com funções diferentes em cada estágio do desenvolvimento emocional de uma criança. De acordo com Winnicott (1960/2023b), o que não pode ocorrer em hipótese nenhuma com a criança, é sentir-se decepcionada por uma pessoa de confiança. Eu pergunto: como esses casos de abandono se instalam na mente de uma crianças?

O pai representa o primeiro vislumbre do objeto total, deixando de ser apenas um substituto da mãe quando esta estiver ausente (WINNICOTT, 1969/1994). Nesse estágio, o papel do pai é servir como uma representação da figura integrada do próprio bebê. O autor complementa ainda que, caso o pai esteja ausente, o desenvolvimento também ocorrerá, mas exigirá um esforço ainda maior por parte do bebê, pois este irá precisará de outro objeto total no ambiente para ter como referência.

Diferenças importantes são observadas a respeito do motivo de afastamento de crianças com seus pais. O sentimento dos filhos que tiveram o pai ausente por motivo de morte envolve luto e tristeza, enquanto os que experimentaram essa experiência devido a separação conjugal sentem revolta e indignação (SGARZELA E LEVANDOWSKI, 2010).

Quando essas pessoas chegam para os divãs, qual a postura do analista, olhar para o buraco fundo que essa ausência causa dentro do sujeito ou corremos o risco de negar a ausência e olhar para a presença – ou não, da mãe que ficou? Pode-se perceber que tenho mais dúvidas do que respostas, mas penso que, pela ausência de trabalhos escritos sobre o assunto, ainda não temos conseguido enxergar que o fato de ter pai e mãe durante todo o processo de crescimento é um privilégio, quando deveria ser básico, assim como ter acesso à educação, à alimentação, saneamento básico e outras tantas que já conseguimos colocar nesse lugar inegociável, embora ainda não acessível a todos.

Aberatury & Salas (1991) explicam que, na infância, a ausência paterna ou sua fragilidade podem resultar na formação de um superego excessivamente severo e prejudicial na personalidade do sujeito. Isso acontece pela necessidade de buscar do lado de dentro os limites que não foram localizados no exterior. Rosa (2022) afirma que a maior ameaça no Édipo, é justamente da fantasia tornar-se realidade e isso pode resultar na neurose por meio do enrijecimento das defesas.

Antonino Ferro (2011) afirma que precisamos de novos mitos que possam dar conta daquilo que o Édipo não alcança. Ele explica que, tendemos a nos ligar mais ao que conhecemos e a trazer mais certezas do que ao que nos é desconhecido. Será que com uma psicanálise maternocêntrica não corremos o risco de entrarmos em um funcionamento negacionista e fragmentado, entrando em conluio com uma sociedade que normaliza algo tão grave?

Referências:

ABERASTURY, A; SALAS, E.J. A paternidade: um enfoque psicanalítico. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. 96 p.

BERNARDI, D. (2017). Paternidade e cuidado: “novos conceitos”, velhos discursos. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde PUC-SP, 26(1), 59–80

FERRO, A. (2010). Degraus psicanalíticos e poluição luminosa. In Evitar as emoções, viver as emoções (pp. 78–91). Porto Alegre: Artmed.

FREUD, S. (2003). Moisés e o monoteísmo – apêndice D In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em (1939 [1934-1938])

SGANZERLA, I. M., & LEVANDOWSKI, D. C. (2009). Ausência paterna e suas repercussões para o adolescente: análise da literatura. Psicologia em Revista, 16(2), 295–309.

WINNICOTT, D. W. E o pai? In: A criança e o seu mundo. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. cap. 17, p. 127-133. (Trabalho original publicado em 1944)

Winnicott, D. W. (2023). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê. In: Família desenvolvimento individual. (pp. 35–44). São Paulo: Ubu. (Trabalho original publicado em 1960).

WINNICOTT, D.W. O uso do objeto no contexto de Moisés e o Monoteísmo. In: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. cap. 34, p. 187-191. (Trabalho original publicado em 1969)

ROSA, C. D. A paternidade em Winnicott: Winnicott em Foco. São Paulo: DWW, 2022.

PORTAL DA TRANSPARÊNCIA. Pais ausentes. In: Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Brasil. Disponível em: https://transparencia.registrocivil.org.br/painel-registral/pais-ausentes. Acesso em: 18 fev. 2023.

Por: Taináh de Barros Alencar – Psicóloga (06/119731), especialista em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP, mestranda pela USP-RP. Membro titular e supervisora pelo IEP-RP.

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