Esquecer é comumente associado a algo ruim. Esquecer uma tarefa, um conceito, uma pessoa… não se gosta de esquecer. A maioria quer evitar o esquecimento, e lembrar; lembrar de eventos de suas vidas, conceitos teóricos, gramáticas de línguas, habilidades práticas, ou detalhes do cotidiano e lembranças. São poucas as pessoas que desejam conscientemente uma mente sem lembranças.

       Imaginemos uma mente capaz disso: uma memória perfeita, com a capacidade de lembrar de absolutamente tudo, ad aeternum. Seria simplesmente fácil aprender uma segunda língua, ou terceira, ou décima, ou aprender qualquer uma das principais disciplinas do conhecimento, e quaisquer aplicações possíveis.

        Esse é o caso narrado por Jorge Luis Borges (2007) em seu conto “Funes, o memorioso”, de 1944. No conto, Irineu Funes, após sofrer um acidente, passa a ter a miraculosa capacidade de lembrar-se de tudo que já viu, ouviu, escutou e sentiu. E tal capacidade é tão poderosa, que todas essas lembranças passam a ocupar-se dele igual e totalmente: ele se lembra de tudo ao mesmo tempo e em todo lugar: “o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e assim também as memórias mais antigas e mais triviais […] Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis” (p. 104). Funes então percebeu que era possível nomear cada percepção de forma única, pois, para ele, cada uma era extremamente diferente, e, como podia se lembrar perfeitamente de todas, não precisa de nenhuma lógica para pensar nelas (como a taxonomia na biologia). Entretanto, Funes perdeu a capacidade de pensar. Ao ter acesso a tudo de forma perfeita, pensar, – que, para Borges, é uma capacidade de esquecer as diferenças, generalizar e abstrair, relacionar conceitos e ideias – pensar não era mais preciso, e, “no mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos” (p. 108).

        O conto de Borges levanta a seguinte questão: porque, ao ter uma memória perfeita, Funes perdeu a capacidade de pensar? Reformulando: qual a relação entre a capacidade de esquecer – a perda inicial de Funes – e a capacidade de pensar – a perda final?

        Na psicanálise, Bion (2022) desenvolveu uma teoria sobre o pensar. Esse autor relaciona o desenvolvimento de um aparato para pensar com a capacidade de tolerar frustrações. É essa capacidade de tolerar frustrações que capacita o desenvolvimento de um aparato para pensar pensamentos. O pensar, é convocado a existir para que se possa lidar com os pensamentos que surgem quando há uma frustração; esta, por sua vez, é decorrente de uma ausência (de um seio, no caso do bebê quando este desenvolve essa capacidade). Em resumo, quando é possível tolerar a frustração e a ausência, o pensar tem a oportunidade de se desenvolver para modificar essa frustração, pelo menos por alguns momentos.

        Outro conceito de Bion (2021) para pensar esse conto de Borges é o de função alfa: esta é responsável por transformar as impressões sensoriais (aquilo que é captado pelos órgãos de sentidos) e as emoções em elementos-alfa. É apenas como elementos-alfa que essas impressões e emoções podem ser armazenadas na memória e utilizadas pelos pensamentos psíquicos e oníricos; ainda, por meio dessa função alfa, é possível que pensamentos e elementos se tornem inconscientes, liberando a consciência da sobrecarga de estímulos. Contudo, quando a função alfa não pode ser estabelecida ou não obteve êxito, as impressões sensoriais e emoções permanecem inalteradas, como elementos betas. Estes elementos são sentidos como “coisa-em-si”, que não podem ser armazenados ou utilizados como os elementos alfa; eles sobrecarregam a
mente, causando como que indigestões e outras consequências.

        Voltando ao conto de Borges, como fica o pensar (ou a incapacidade de) no caso de Funes? Com uma memória perfeita, Funes consegue evocar em sua lembrança, a qualquer momento, o que ele deseja. Quando confrontado com uma frustração, por exemplo, podemos pensar que Funes simplesmente não precisa modificá-la, pois ele evoca uma lembrança como uma “coisa-em-si”, que já o satisfaz. Para ele, é como se tudo fosse simplesmente aquilo que é, sem nenhuma transformação. Assim, não há nele elementos alfas; tudo são “coisas-em-si”, isto é, elementos beta. A saturação de elementos beta e a incapacidade de esquecer congestionam sua mente. Esta se torna saturada de elementos já saturados por eles próprios, impossíveis de serem associados a qualquer elemento novo; sua mente é “um mundo entulhado no qual há apenas detalhes imediatos” que não se relacionam. Bion (1973, p. 33) afirma: “quanto mais bem sucedida em suas acumulações é a memória, mais e mais ela tende a assemelhar-se com um elemento saturado, saturado com elementos saturados. [Uma pessoa] com mente desse tipo é incapaz de aprender, porque está satisfeita.”

        Sabe-se que é impossível existir uma pessoa como Funes, com uma memória perfeita. Atualmente, contudo, há algo que funciona de modo semelhante, mas com uma base de dados que ultrapassa a memória de um indivíduo: inteligências artificiais (IAs), como o ChatGPT. Suas consequências na sociedade ainda são incertas. Para o trabalho, há quem diga que pode ser utilizado para aumentar a eficiência dos trabalhadores, mas também há quem perde o trabalho por causa dele; na educação, para os alunos, ele pode ser utilizado para se esquivar de tarefas de casa ou trabalhos, ou para buscar mais exercícios e referências para o aprendizado – uma breve busca por notícias relacionadas a essa ferramenta revelam essa dicotomia.

        Franco “Bifo” Berardi (2023), filósofo italiano, questiona essas ferramentas e sua lógica peculiar, associando as IAs ao autômato de Hoffmann (2023) e ao conceito de unheimlich [inquietante ou infamiliar], de Freud (2010). O autor reflete sobre as consequências sociais e éticas da maior presença e integração, em nosso cotidiano, de autômatos, objetos/seres que despertam ambiguidade e infamiliaridade, assim como Olímpia, em “O homem da areia”. Para além disso, Berardi argumenta que os autômatos (ou IAs) possuem uma lógica que difere do pensamento humano: sua razão artificial é extremamente eficiente para alcançar qualquer objetivo, muito além do potencial humano. Isso ocorre pois, na razão artificial, falta consciência, que é necessária ao pensamento humano. Enquanto essa razão busca a eficiência para alcançar um objetivo, a consciência permite questionar ética e esteticamente o objetivo.

        Assim como Funes, as IAs possuem uma memória perfeita – ou, a incapacidade de esquecer. Com uma memória e uma base de dados entulhada e saturada, ambos são incapazes de discriminar e aprender de suas experiências; não há a oportunidade de se frustrar, sendo a frustração essencial para o desenvolvimento do aparato para pensar (BION, 2022). Não há a ação da função alfa, que permite, quando bem sucedida, o esquecimento; esquecimento que “desentulha” a mente, abrindo-a às experiências. Além disso, é como se ambos não tivessem a capacidade negativa, conceito do poeta John Keats e utilizado por Bion, que é a capacidade de
estar em incertezas, mistérios ou dúvidas, sem a irritação ou necessidade de buscar fatos e razão. Berardi (2023), em seu texto, conclui que falta às IAs o “Experiri“: a experiência de viver no horizonte da morte, com tudo que isso acrescenta, transforma e significa à vida – que é intraduzível nas linguagens artificiais -, e que ressignifica toda a capacidade de pensar.

        A capacidade de esquecer, junto com a capacidade de tolerar as incertezas e o desconhecido, é o que possibilita o desenvolvimento da capacidade de criar, e, além disso, de apreender e apreciar o que se experiencia em vida.

Referências:

BERARDI, F. Unheimlich: The Spiral of Chaos and the Cognitive Automaton. In: e-flux notes. 10 de mar de 2023. Disponível em <https://www.e-flux.com/notes/526496/unheimlich-the-spiral-of-chaos-and-the-cognitive-automaton>. Acesso em 4 de jun de 2023.

BION, W. R. Aprender da experiência. Tradução de Ester Hadassa Sandler. São Paulo: Blucher, 2021.

BION, W. R. Uma teoria do pensar. In: BION, W. R. No entanto… pensando melhor. Tradução de Paulo Cesar Sandler. São Paulo: Blucher, 2022, p. 157-170.

BION, W. R. Realidade Sensorial e Psíquica. In: BION, W. R. Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1973. cap.3, p.29-45.

BORGES, J. L. Funes, o memorioso (1944). In: Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 99-108.

FREUD, S. O inquietante [1919]. In: FREUD, S. Freud (1917-1920) – Obras completas volume 14. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HOFFMANN, E. T. A. O homem da areia. Tradução de José Feres Sabino e Marcella Marino. Artes de Eduardo Berliner. São Paulo: Ubu Editora, 2023.

André Molina Borges é psicólogo (CRP 06/180202) graduado pela FFCLRP/USP, e é aluno do curso de especialização em Teoria e Técnicas Psicanalíticas no IEP-RP. Atua na área clínica, atendendo adolescentes, adultos e casais, além de dedicar-se à literatura quando possível.