“(…) Talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo. É como se as notas de música fizessem uma espécie de parênteses no tempo, de suspensão, um alhures aqui mesmo, um sempre no nunca” (Barbery, 2014).

      Falar sobre o luto…Perder alguém. Perder…lutar…enlutar-se…

      Um tema que parece nunca estar pronto. Ou nunca se parece estar pronto pra falar…o medo é se perder nele e afundar. Mas os dias vão passando e voltamos a caminhar.

      A experiência de perder alguém próximo é de uma quebra naquela vida que tínhamos antes. É como se um pedaço da vida não existisse mais. É parte nossa que se vai com a ida daquela pessoa. É culpa, é falta, é saudade. É se dar conta da passagem do tempo. E também do que não foi possível passar. Do que a outra pessoa não pôde viver e você viverá. Do tempo que você poderia ter aproveitado mais. Do que você podia ter feito para salvá-la e não fez…não se sabe por que…ou sabe-se lá…bem no fundo, sabe-se?

      Freud (2006), em “Reflexões para os tempos de Guerra e Morte”, afirma que antes da Guerra, havia uma tendência para colocar a morte de lado, eliminá-la da vida. Afirma também que é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos, nos percebemos como expectadores. Inconscientemente, estamos convencidos de nossa imortalidade. Assim, quando acontece o falecimento, somos atingidos e abalados em nossas expectativas. Quando morre alguém que amamos, nossos desejos, prazeres e esperanças morrem junto. Nada consola ou preenche o vazio deixado. Nossa vida empobrece. Pensamos sobre quem substituirá o pai, o filho. E o hábito de excluir a morte da nossa vida gera outras complicações.

      Quando penso na minha primeira experiência de luto, quando perdi meu avô na infância, lembro do meu primo tremendo e a gente se havendo com aquela dimensão estranha de não ter mais meu avô por perto. O choro foi intenso…e tive dores de cabeça pra mais de um semestre…eu não sabia o que era perder alguém. Mais uns anos e perdi uma amiga. Foi um golpe. Ela não deu conta de suportar suas dores e retirou-se. Deixando em nós, seus amigos, uma incompreensão, uma falta que nunca teve resposta. Não houve despedida.

      Quando minha primeira filha era pequena, perdi minha avó, meu colo, meu ninho de afeto. Ela era para quem eu corria quando tinha angústias de adolescente, conflitos familiares, minhas frustrações. Eu corria para a casa dela e tinha certeza de que lá eu poderia ficar até a dor passar. Eu estive com ela no luto pelo meu avô.

      No ano passado perdi outra amiga. Da minha idade. Com muitos sonhos e tanta vida nos olhos dela. Com ela eu tinha algumas semelhanças de alma…, mas as diferenças necessárias pra me fazer crescer…ela me ensinou tanto. Achei que não fosse conseguir. Deu medo. Medo de morrer. Medo de não viver mais. Medo de adoecer. Medo de perder meus pais. O tremor desta vez foi meu. Tremor, temor, terror. Fui retirada da minha ilusória segurança e tive que olhar para isso que estava tão guardado, reprimido. Precisei olhar pra velhice, pra vida, pros caminhos. O futuro. A transcendência…ou não…e me revirar para poder sentir sem achar que iria sucumbir. Tocar, sem tocar demais. Cada dia, um pouquinho, tateando. Buscando sentido. Buscando sentir. Buscando existir.

      Lidar com a morte é algo que muda tudo. Quando converso com meus pacientes sobre seus lutos, me encontro com eles em seus sentimentos. Nos encontros está aquela filha que perdeu o pai de um jeito trágico. A fantasia de que se ela tivesse ido vê-lo, ele não teria morrido. A neta que sentia culpa pela aversão ao cheiro da avó tão amada que foi retirada da convivência tão cedo. As mães que perdem filhos. A filha que perdeu a mãe e não tinha mais ninguém…A irmã que se culpa por não ter ido visitar o irmão…e ele se foi. Sente culpa por não o ter salvo…agora se entorpece para esquecer…A moça que perdeu um filho…e outros filhos vindouros, na barriga. As mães que perdem filhos. Como é isso? Como viver depois disso?

      Para Freud (2006), procuramos nos reconciliar com a morte através da ficção, onde há pessoas que sabem morrer. Onde compreendemos que, apesar de todas as vicissitudes da vida, precisamos preservar intacta uma vida. Na arte, podemos morrer com o herói e sobreviver a ele. E morrer novamente, em segurança, com novo herói. Esta perspectiva convencional é diferente em situações como a guerra. Por outro lado, o autor lembra da ambivalência do sentimento e destaca que aqueles que mais amamos também podem nos causar algo de estranho e certa hostilidade. E sua morte, pode agradar, ao mesmo tempo que dói. Daí pode advir a culpa.

      Em “Luto e Melancolia”, Freud, (2006), nos diz que quando o objeto amado não existe mais, há um teste de realidade que exige que a libido seja retirada de todas as suas ligações com o objeto. E isto causa uma oposição intensa, gerando um desvio de realidade e um apego ao objeto através de uma psicose alucinatória, carregada de desejo. A realidade normalmente será preservada, mas isto não ocorre imediatamente. Ocorrerá aos poucos, pois cada lembrança que liga a libido ao objeto será desvinculada da libido. Este é um processo extremamente penoso, contudo, quando se completa, o ego se torna livre novamente. (Diferentemente da melancolia, quando a perda objetal se transforma numa perda do ego).

      Assim, eu penso (e sinto) que o luto é um furacão, que faz temporal dentro de nós, nos turva a vista, nos retirando do solo firme, forçando a enfrentar a morte, a finitude. Por um tempo, parece que as coisas viram pó e ficam buracos em nós. É difícil de falar na análise. Dá impressão que a dor só vai crescer. Mas a análise é importante. Ajuda a tocar de mansinho no sofrimento. Conforme podemos dar conta. Uma analista pode ficar junto e fazer a função de continente, como descreve Bion (Zimerman, 1995), acolhendo a angústia de morte e a devolvendo desintoxicada, com um nome e um significado. Aos poucos, a dor se atenua. E o relógio gira permitindo elaborações. Buscamos outros objetos para investir a libido. Buscamos arte que nos ajuda a transformar, reviver, aguentar.

      A exigência de imortalidade é produto de nossos desejos e não pode ser considerada real, segundo Freud (2006), em “Sobre a Transitoriedade”. Ele destaca que o valor da transitoriedade é o mesmo da escassez do tempo. Aquilo que é belo não diminui seu valor de acordo com sua duração. A perfeição de uma obra de arte  independe de sua limitação temporal, é determinada por sua significação para nossa vida emocional.

      No processo de luto, somos levados a compreender a relevância da significação emocional do objeto que já não dura e se há possibilidade de viver esse momento na companhia de um analista, aumentam-se as chances de uma elaboração que nos faz sair do furacão em outro lugar, com condições internas para contemplar outras paisagens. Onde o ente amado pode caber na saudade. E a consciência da morte já não paralisa. Ainda amedronta, mas não paralisa. Onde talvez a beleza, a ambivalência e a inteireza da relação que se tinha possam ocupar lugar como memória.

Bibliografia:

BARBERY, Muriel. A elegância do ouriço. Tradução por Rosa Freire d’Aguiar. São
Paulo: Companhia das Letras. 2014.

FREUD, S. Luto e Melancolia. In: A história do movimento psicanalítico, Artigos
sobre a Metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916) – Obras Completas, vol. 14.
Tradução de Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Britto e Cristiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Imago. 2006, p. 243-266.

FREUD, S. Reflexões para os tempos de Guerra e Morte. In: A história do movimento
psicanalítico, Artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916) – Obras
Completas, vol. 14. Tradução de Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Britto e
Cristiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago. 2006, p. 281-312.

FREUD, S. Sobre a transitoriedade. In: A história do movimento psicanalítico, Artigos
sobre a Metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916) – Obras Completas, vol. 14.
Tradução de Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Britto e Cristiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Imago. 2006, p. 313-319.

ZIMERMAN, D. Bion: Da Teoria à Prática – Uma leitura didática. Porto Alegre: Artes
Médicas. 1995.

Texto de Louise Helena Silva Pires- Psicóloga clínica, psicóloga na Saúde Mental Pública, graduada pela FFCLRP/USP, Mestre em ciências pela FFCLRP/USP e aluna de nossa especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas.