É de praxe, no mundo das “psicologias”1 com as quais nos deparamos ao longo dos nossos cursos de graduação ou de pós-graduação, que sejamos, muitas vezes, ensinados a atuar na clínica no sentido de “garantir ao sujeito estratégias de adaptação” ao mundo tão difícil em que este está inserido. Algo que sempre me incomodou ao estar adentrando esta prática clínica da psicologia é que a tal da “resiliência” é proposta como uma característica do sujeito, que deve ser valorizada e, caso não haja, devemos, como profissionais, ajudá-lo a desenvolvê-la. É curioso que isso seja esperado de nós, sendo que eu mesma muitas vezes não me considero uma pessoa resiliente. Caso eu fosse exposta a muitas dificuldades que alguns de meus pacientes já me relataram, como, por exemplo, anos de violências repetidas, tenho certeza de que eu, muito provavelmente, perderia as esperanças no mundo que me cerca. É muito fácil falar em “adaptação” como algo glorioso e valorizado, um triunfo do sujeito como resposta às dificuldades, quando os profissionais que o atendem estão seguros em suas bolhas de privilégios.
     Acredito que seja mesmo um privilégio a possibilidade de se manter distante do paciente e não experienciar emocionalmente as dificuldades que ele ou ela já vivenciou em sua vida. Por exemplo, caso um paciente não consiga evoluir no processo terapêutico, é muito mais fácil que falemos “as resistências narcísicas do paciente não permitem uma evolução”, do que de fato compreendermos como nossa prática e modo como interpretamos ou nos comunicamos com o paciente prejudicou este processo. Por isso, quando conheci os estudos de Sándor Ferenczi (algo que agradeço a meu querido orientador, Prof. Dr. Leonardo Câmara), notei que, pela primeira vez, alguém falava sobre esta hipocrisia da prática clínica que eu percebia presente na proposta de quase todas as psicologias a que eu era apresentada.
     Ferenczi (1873-1933) foi médico, neurologista e psicanalista, que trabalhou de forma muito próxima a S. Freud. Ferenczi vem sendo cada vez mais retomado nas discussões contemporâneas, principalmente quando tratamos sobre trauma. E isso não acontece por acaso. O autor foi conhecido, como ele mesmo se autodenomina em seu ensaio de 1931, “Análise de Crianças com Adultos”, como o enfant terrible da psicanálise. Ferenczi não apenas atendia os pacientes que eram considerados por outros clínicos como incuráveis ou impossíveis, como também ousava realizar considerações teóricas que iam além do que já estava posto como concreto e cristalizado. É interessante como ele se propõe a tocar em feridas que são difíceis de mexermos, como, por exemplo, a questão de termos, via de regra, de quebrar os três preceitos técnicos da psicanálise de Freud (neutralidade, abstinência e anonimato), na situação analítica com pacientes “difíceis” (FERENCZI, 1920/2011).
     Foi quando notei, na prática, que, se não nos deixamos atender os pacientes com o “sentir com” e com o “tato”, conceitos ferenczianos, muitas vezes, o que acontece é que o paciente, novamente como aconteceu em toda sua vida, torna-se alienado e tende a adaptar-se a nós, analistas e psicoterapeutas. O que quero dizer com isso é que apenas com uma atitude que quebre com os padrões de alienação a que o paciente da clínica do trauma foi exposto é que conseguimos trabalhar de fato com suas questões. Ferenczi (1931/2011) propõe exatamente a análise de crianças para pacientes adultos com estruturas de personalidade traumáticas para que muitos dos preceitos que já eram estabelecidos na época pela psicanálise fossem postos em questionamento. O analista ou psicoterapeuta, na visão de Ferenczi, é quem deve se adaptar ao seu “caso difícil”, e não o paciente que deve se adaptar às necessidades narcísicas do analista ou psicoterapeuta.
     Isso porque foi exatamente o “adaptar-se” que levou, para Ferenczi, à estrutura traumática. A estrutura do trauma, para o autor se baseia em dois tempos: o momento em que a criança sofre algum traumatismo (como, por exemplo, um abuso sexual) e um segundo momento, em que ela é desmentida por outro adulto a quem tenta pedir ajuda pelo que aconteceu. Ferenczi (1931/2011) aponta que é sempre pior quando a pessoa nega o evento ou diz que a própria criança é a culpada disso. Ele até chega a colocar que, caso haja uma figura materna que possa tratar com ternura, tato e, mais raramente, sinceridade, a criança neste momento de fragilidade, é possível que nada aconteça, que não ocorra nenhuma sequela desta experiência traumática vivida.
     Como parece ficar claro em sua obra, o autor propõe que o que é o devido causador da estrutura da personalidade traumática (que é caracterizada pela clivagem), é exatamente este ambiente que é alienante. É como se fosse um trauma que é vivido a cada dia. A criança não é sentida como parte do ambiente, em que ela chama e ninguém responde. Não necessariamente esta família causa algum abuso à criança, mas parece haver um trauma subentendido que não pode ser verbalizado. Uma ausência de uma figura que seja verdadeiramente cuidadora. E isto não é raro de ser observado nos nossos consultórios. Uma pessoa que não foi bem acolhida na família e, mais do que isso, teve que se adaptar a este meio que mal a recebeu.
     Em “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”, de 1929, Ferenczi trata exatamente sobre esta questão de como a forma como a criança é recebida quando chega à família pode levar à estruturação clivada da personalidade, típica do trauma. O leite é dado, não existe necessariamente uma negligência da família, ou falta de cuidados práticos (alimentos, fraldas, roupas, suprimentos). Mas parece que nenhum afeto acompanha este leite. O seio é um seio sem rosto. A mãe é sem rosto, assim como é observado no quadro de Frida Kahlo “Minha Ama e Eu”. A bebê Frida (com a face já marcado pela “maturidade adaptativa”) recebe o leite de alguém que usa uma máscara, que não existe, enquanto biologicamente suas necessidades são supridas, por assim dizer.
     E o que resta a estes bebês é exatamente o adaptar-se ao meio. E triunfar! Claro que é de se aplaudir alguém que sobrevive a este seio sem rosto, mas será que isso seria algo para ser comemorado ou deveríamos ter um olhar crítico para com estes pacientes que estão acostumados com esta alienação? Penso que, por meio deste breve escrito, quis deixar exposto que, a meu ver, com base em Ferenczi, devemos ter cuidado, tato e sentir com o paciente para que não caiamos na fácil armadilha de repetir seu passado. De fazer com que ele ou ela tenha de se adaptar a nosso modo de ser e expectativas pessoais, algo que é comum ao sujeito em questão. Em contraste, devemos viver e experienciar com ele o sofrimento.
     Ferenczi (1939/2011) coloca que é esperado que, em casos em que há apenas desprazer no mundo vivenciado por uma criança, ocorra a rápida desintegração. No entanto, o que ocorre é que, no processo dinâmico de suas personalidades clivadas, tentem sobreviver a qualquer custo e a adaptação seria uma forma de conservar-se neste mundo sem esperança de cuidado. Mas, ao mesmo tempo, ainda existe a parte que deseja se desintegrar e pulverizar-se pelo espaço. Ou seja, por trás da adaptação, há sempre pulsão de morte (ou uma tendência à desintegração). Escondida, porém, persistente.
     Se não somos capazes de nos adaptarmos ou de abrir os olhos para o sofrimento trazido pelo paciente nas sessões, podemos nos considerar como próprios coveiros, que trabalham em função da pulsão de morte. Terminamos por enterrar qualquer possibilidade de esperança que talvez fosse existir nesta relação única. O paciente moribundo é, mais uma vez, impossibilitado de comunicar sua dor.
1 Neste texto, tenho como objetivo comunicar uma reflexão minha a respeito de práticas psicológicas que acredito que desconsideram o sofrimento do(a) paciente, ignorando o fato de que, muito provavelmente, ao estabelecermos um propósito do tratamento baseado no que nós pessoalmente cristalizamos como positivo, isso possa repetir, por exemplo, um passado traumático. Utilizo a palavra “psicologias” aqui para me referir àquelas que têm como principal objetivo da psicoterapia a adaptação do sujeito ao mundo, algo que explicito mais à frente. Porém, não incluo, nesta crítica, autores da Psicanálise, já que acredito que esta seja a abordagem que justamente caminha em oposição a este fenômeno. Além disso, a generalidade com que uso o termo “psicologias” é justamente para propor um olhar crítico para a nossa própria prática profissional como pessoas no mundo, não necessariamente criticando uma abordagem psicológica em específico.

Referências Bibliográficas
FERENCZI, S. Prolongamentos da “técnica ativa” em psicanálise. In: FERENCZI, S. Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Publicado originalmente em 1920.
FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In: FERENCZI, S. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Publicado originalmente em 1929.
FERENCZI, S. Análise de crianças com adultos. In: FERENCZI, S. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Publicado originalmente em 1931.
FERENCZI, S. Toda adaptação é precedida de uma tentativa inibida de desintegração. Notas e fragmentos. In: FERENCZI, S. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Publicado originalmente em 1939.

Sobre a autora:
Amanda B. Ferrador é psicóloga (CRP – 06/194456), com formação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSCar. Realiza especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto (IEP-RP). Dedica-se à psicologia clínica, atendendo crianças, adolescentes e adultos.