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Gravura Anna Cunha (2016)

“O que tem que ser tem muita força.”
​(Guimarães Rosa)

É a lei da vida. Esta força que urge por existir. Que encontra seu curso e meio de se manifestar. E desabrochar também. Mesmo em inóspitos tempo e espaço. Em meio a relações desérticas, isoladas e ilhadas. Pois que, no mais insuspeitado momento, em meio à náusea do mundo, eis que “[…] uma flor nasceu na rua!” (ANDRADE, 2012, p. 14).

Também é a lei do inconsciente, que comunica a despeito da falta do concreto. Pois que, para se enxergar, não bastam os olhos. Posto que também se capta aquilo que nem mesmo se vê – com os olhos, frisa-se. Mas qual não era o medo de, em tempos pandêmicos, de atendimento psicológico online, não saber como nem quando comunicar a vida que vem? Esta, que diz da gestação da analista, que, em tempos anteriores, introduzia-se pelo despontar da barriga, fazendo-se até mesmo presença intrusiva. Revelando-se, outrora, concretamente aos órgãos dos sentidos, o que, por sua vez, não garantia visão, nem captação, o que dirá compreensão e elaboração. Mas, hoje, através de uma tela, ou menos, por meio de um áudio, essa força se manifestaria? Em caso positivo, como? Do que uma questão se impunha, entre curiosidade, receios e inquietações: como comunicar – anunciar ao paciente ou, então, aguardar, pois a gestação encontraria uma via para se expressar?

Se existe uma força que faz furo no concreto – ou no asfalto -, que é a de Eros, como força criadora, necessitava, pois, acreditar no que entoam Brandt e Nascimento (MARIA MARIA, 1978): “É preciso ter sonho sempre / Quem traz na pele essa marca possui / A estranha mania de ter fé na vida.”. E, nós, ainda mais: no inconsciente e em sua potente comunicação, que encontra seu curso, por vias deveras insuspeitadas. E variadas, dependentes inclusive da relação da dupla que se forma, em suas espectrais manifestações. E veredas transferenciais. 

Aquelas que convocam a presença viva da díade que se encontra no agora e então. Que falam de duas pessoas que se relacionam, não lá fora, mas aqui dentro, não limitado ao espaço físico de uma sala de atendimento. E que hoje mais que se estende, alcança as fibras digitais, como veios que irrigam nascentes e raízes que se fixam e absorvem os nutrientes. Pois o dentro é o que se conjura no espaço do encontro. Tendo o inconsciente a marca pungente, comunicando-se, mesmo na via online, com ou sem imagem. Posto que as transformações da gestação não se limitam ao físico, abarcando o psiquismo da analista gestante e suas reverberações. E suas relações também.

E o que dizer então, de um sentimento – culpa? – de provocar uma nova perturbação em um momento já deveras turbulento como o é da pandemia? Como se fosse possível manter tudo inalterado… Que potencializa uma cesura dentro de outra, aquele rachar do solo, desvelando suas marcas e composição. Para Bion (1981), cesura faz alusão a processos de ruptura, que, ao mesmo tempo que separam, implicam continuidade e trânsito na passagem de um estado mental a outro. E faz ponte. Travessia. Pois a cesura carrega em si a fecundidade daquilo que pode vir a ser.

Se, por um lado, modifica o solo, por outro abre espaço, permitindo que algo possa brotar, nascer. – Quem sabe uma flor e, claro, seus espinhos. Afinal: “Picasso pintou um quadro num pedaço de vidro de maneira que pudesse ser visto de ambos os lados. Sugiro que o mesmo pode se dizer da cesura: depende de que lado se mira, para qual lado se está indo.” (BION, 1994, p. 306). – Um nascer com toda a sua pulsionalidade interior, que, então, revela-se. A partir de abalos sísmicos, interiores, também existentes nas relações psicoterapêuticas. Abrindo novos caminhos e manifestações no atendimento clínico. Dizendo de fraturas que transitam entre manifestações de vida e de morte. De cujas aberturas e rachaduras não podemos nos esquivar se quisermos nos manter em nossa função analítica.

Que se dá na e através da transferência, pois que trabalhar a partir da cesura, investigando-a, é atravessá-la da perspectiva de dentro. É ousar, quem sabe, perturbar um universo mental, permitindo embrenhar-se no terreno do desconhecido rumo a novas construções. Possibilitando gestar um novo espaço que, ao mesmo tempo, propicia a gestação de um analista outro, o qual se reconstrói em meio à experiência. E que oportuniza inaugurar e iluminar frestas rumo a caminhos não antes explorados. O que ocorre na presença de um terceiro, esse ilustre desconhecido. Cuja força se faz sentir, mesmo quando ainda não nascido. 

Posto que a vida traz a potência daquilo que tem que ser, que, então, brota, como um ato de fé na vida, que prevalece. Capaz de ressignificar, gestar e fazer nascer até mesmo no mais concreto e insalubre dos tempos e terrenos. Pois que há o anseio, como propõe Bion (1994), uma força que urge para existir. Já dizia Hesse (2015, p. 73): “Quem quiser nascer tem que destruir um mundo […]”, mesmo que seja um mundo um tanto quanto estilhaçado. Podendo dizer da transformação da concretude em algo vivo, que, então, floresce. Em outras palavras, diz-se do processo de poder dar à luz. Seja o bebê real, seja o simbólico, alumiando o que antes não podia ser re-conhecido. O nascer de novas relações, ou o renascer do vínculo em toda a sua inteireza, complexidade e humanidade.

É a vida encontrando seu curso, insistindo e teimando em continuar, recriar-se e pulsar. Resistir. Re-existir. Como nos embala Couto (2011, p. 70), “No oculto do ventre, / o feto se explica como o Homem: / em si mesmo enrolado / para caber no que ainda vai ser.”. Tal qual as relações, que se engravidam do seu devir, necessitando de um invólucro continente de cuja elasticidade tantos aspectos ainda não nascidos podem vir a germinar, já que, de “Parteiros gestos […] a vida inteira vamos nascendo.” (COUTO, 2011, p. 5). E, das relações, nasce-se inclusive um analista. Pois, em tempos sombrios, também se encontram movimentos embrionários e fecundos, com toda a sua potência de vida. Ou, como eternizado nas letras de Tom Jobim e na voz de Elis, “É a promessa de vida no teu coração.” (ÁGUAS DE MARÇO, 1972). 


Referências: 
ÁGUAS DE MARÇO. Compositor: Tom Jobim, 1972. Zen Produtora Cinematográfica e Editora Musical Ltda 1 CD.
ANDRADE, C. D. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012.
BION, W. R. Clinical seminars and other works. London: Karnak Books, 1994.
BION, W. R. Cesura. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 123-136.
COUTO, M. Tradutor de chuvas. Alfragide: Editora Caminho, SA, 2011.
HESSE, H. Demian. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.
MARIA, MARIA. Compositor e intérprete: Brant, F.; Nascimento, M., 1978. Rio de Janeiro: EMIODEON. 2 CD, CD 2, faixa 8.


Por: Ana Flávia de Oliveira Santos – Psicóloga formada pela FFCLRP-USP – CRP 06/90086, Mestre em Ciências – Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP). Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto – IEPRP.