Ao concluir a leitura de “ Tudo é Rio” logo me dei conta dos motivos de tamanha repercussão. Uma história que tem a capacidade de retratar a complexidade das relações e de transmitir fortes impactos ao longo do livro, sendo possível experimentar uma variedade de sentimentos. A escrita de Carla Madeira impressiona e mobiliza por tamanha autenticidade nas descrições sobre os sentimentos humanos, posto que se trata de um romance de ficção.
A complexidade dos personagens e das circunstâncias da história possibilita partir de diferentes perspectivas e assim abordar variadas análises e compreensões. Porém, proponho aqui uma discussão sobre a relação do casal principal da história, Dalva e Venâncio, e dois principais acontecimentos.
O que encontramos no início da história desse casal é uma relação envolvida por uma paixão profunda, acompanhada de intensos desejos e da sensação de completude. Entre eles houve um reencontro já que se conheciam na infância e após anos distantes foram tomados por uma intensa atração. Eles se entregaram para um romance vivenciado de forma única, queriam estar cada vez mais próximos e explorando tudo o que uma paixão poderia oferecer, experimentavam as melhores emoções e sensações.
“Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar um no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo. No caso de Venâncio e Dalva, o gosto de cada sentido grudava os dois para mais de muitas vidas, pareciam eternos de tão juntos. Um saboreava o outro. Viveram muito tempo assim irrigados até que Dalva engravidou” (MADEIRA, p.19, 2021).
Não se passa muito para que junto de toda essa intensidade algumas emoções ambivalentes comecem a coexistir na relação. E assim, reações controversas de Venâncio ficam evidentes, ele demonstra incômodo com as pessoas em volta de Dalva, fica desconfiado e com medo de que essas pessoas pudessem ver nela o que somente ele via. Seu desejo de estar sempre com a amada, se manter repleto de seus carinhos e envolto aos seus encantos eram intensos e por vezes o deixavam agoniado.
A voracidade de Venâncio vai se evidenciando e intensificando até o momento em que ele se descontrola e ocorre um primeiro episódio violento. Venâncio agride fisicamente um amigo de Dalva, deixando o casal assustado e a consequência é um afastamento deles, mas após o fato Venâncio se arrepende e Dalva aceita as desculpas que vem acompanhado de um pedido de casamento.
Ao pensarmos sobre esses comportamentos intensos e tão instintivos de Venâncio, podemos relacionar e retomar aos conceitos de Klein (1957), pensando a princípio na relação entre voracidade e inveja. Já que é possível compreender que todo o intenso desejo de ter Dalva integralmente para si, fez com que Venâncio não suportasse vê-la se divertir e ser simpática com um amigo.
De acordo com Klein (1957), a voracidade é quando o sujeito tem necessidades maiores que o objeto amado pode lhe oferecer. Enquanto a inveja, busca depositar no objeto amado a maldade e as partes ruins do self, disposto a destruí-lo.
Nesse primeiro episódio agressivo Venâncio demonstra todo o ódio que sentiu ao agredir o amigo de Dalva, guiado pela inveja daquele momento de troca entre dois amigos. Esse amigo se tornou uma ameaça para ele ao se deparar com ambos rindo juntos, algo que só poderia acontecer entre ele e Dalva, não com outra pessoa. Agredindo o amigo, Venâncio deposita todo sua ódio e revolta no amigo que é o objeto ameaçador, mas certamente esse ódio também atinge Dalva.
Nesse ponto podemos compreender tamanha insegurança que Venâncio vivenciava. De acordo com Klein (1957), há pessoas que contam com sua segurança puramente mediante a voracidade, ou seja, sobre a sensação do que ela possui e do que pode obter de coisas boas.
Quando Venâncio observa uma pessoa que possa ter mais do que ele, sua segurança e autoestima ficam abaladas e quem ele é ou o que possui de bom dentro de si se tornam insignificantes. Não apenas ele sente sua defesa prejudicada, mas também sente que o outro lhe roubou o que lhe garantia segurança.
O casamento acontece e o que o casal vivencia em seu primeiro ano de casados é tudo o que se espera de melhor de uma relação amorosa, eles resgatam o que conseguiam viver de mais prazeroso da paixão, não se desgrudavam e viviam como se pudessem se bastar. Porém, tudo muda com a gravidez de Dalva e com o nascimento do filho do casal uma tragédia atravessa a vida deles, se enraizando anos de desafeto e rancor.
Venâncio não suporta ver Dalva amamentando o filho deles e em um ato completamente inflado pela inveja e o ciúme ataca ela e o bebe. Encontrar Dalva amamentando, se doando e trocando um momento de intenso amor com o filho, foi uma cena em que Venâncio se cegou, ficou inundado com sentimentos confusos e delirantes. Ele foi invadido de forma a não reconhecer o momento especial que estava acontecendo, Venâncio não apenas se viu excluído, mas trocado e traído.
De acordo com Klein e Riviere (1929), no ciúme delirante a pessoa sente que o objeto amado lhe está roubando. Porém, essa sensação delirante existe quando a pessoa tem dúvidas profundas a respeito da própria capacidade de amar e da sua bondade.
O ciúme e a inveja em Venâncio eram tão intensos que entraram no lugar do amor que talvez Venâncio careceu em seu passado, na infância. Seu amor e idealização por Dalva eram tão grandes que não suportou vê-la se doando para seu filho, colocando o amor do casal à prova naquele momento. E seu outro objeto de amor, o próprio filho se tornou seu inimigo.
A partir desse episódio retratado de forma tão intensa na história, acompanhamos profundas mudanças na vida dessa família e principalmente do casal, e isso vai se desenrolando ao longo do livro e desencadeando outros desdobramentos mais complexos. É declarado como esses sentimentos foram avassaladores e atravessaram a vida deles violentamente.
Por fim, é possível compreender como a história casal foi permeada por um amor intenso e até onde pudemos acompanhar não possibilitava espaço para outros tipos de relações. Incluir uma terceira pessoa se tornava ameaçador para aquele amor, expondo assim a fragilidade da relação.
Contudo, ao final no livro vemos uma abertura de possibilidades, existindo espaço para outros caminhos e ficando em aberto para as nossas fantasias o desenrolar da vida do casal e da família.
REFERÊNCIAS
KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. Imago, 1946-1963. Cap. 10, p. 213.
KLEIN, M., & RIVIERE J. Amor, ódio e reparação. The International Journal of Psycho-Analysis, Imago, 1929, Cap. 1, p 46.
MADEIRA, Carla. Tudo é Rio. Editora Record, 2021. (Publicado originalmente em 2014).
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Júlia Marini Bertoloto, Psicóloga atuante na clínica. Formada pela UNAERP-RP. Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas pelo IEP-RP. Membro e integrante do Departamento Científico do IEP-RP.