“A transformação da sociedade”

Nos últimos tempos, a sociedade tem interagido de forma inédita, em que smartphones e o acesso
à informação instantânea tem sido protagonista, transformando a conexão com o mundo e com os outros, em uma velocidade sem precedentes. Se por um lado, esses aparelhos contribuíram significativamente para melhoria da nossa qualidade de vida, por outro, nos posicionou de forma passiva no que diz respeito às nossas relações emocionais, e isso é de se esperar que aconteça, já que uma revolução da nossa forma de interagir com o mundo, resulta em uma transformação radical em todos os níveis.
No que se refere à nossa psiquê, chamo a atenção para dois pontos de reflexão: a velocidade
dessas mudanças e a possível recusa ao amadurecimento. Nesse primeiro, com a aceleração das formas de se relacionar, é provável que ocorra uma tendência à superficialização das relações. Hoje, acredita-se ter domínio de um assunto ao ouvir um ídolo falar, assim como ser viável interpretar um sentimento através de um emoticon, sem que haja necessariamente um aprofundamento com o interlocutor. A leitura do outro agora perpassa por uma superficialização das emoções, um signo que não necessita de muita elaboração para ser interpretado. Além disso, é notório que hoje em dia nos comunicamos de maneira mais acessível, com um número muito maior de pessoas, com mais informações.
Essa visão simplista do mundo, devido à velocidade com que interagimos e falta de profundidade,
tende a ser preenchida com as projeções daqueles que interagem com ela. O mundo, as coisas e o outro,
agora, mais do que nunca, assume uma posição de atender nossas expectativas, e aquele que se contrapõe é uma ameaça à frágil estrutura do ego e um retardo do amadurecimento. Para Melanie Klein, o bebê inicialmente se encontra em um estado de desenvolvimento caracterizado pela posição esquizo-paranóide, na qual apresenta algumas características fundamentais, tais como a fragmentação do ego, a divisão do objeto externo (normalmente representado pela mãe), e, de maneira mais específica, a divisão do seu seio materno em “seio bom” e “seio mau”. No contexto dessa posição, o “seio bom” é aquele que gratifica o bebê de maneira infinita, enquanto o “seio mau” é aquele que provoca frustração (Simon, 1986).
À medida que ocorre uma superficialização nas interações humanas, em que a velocidade dos
processos é maior do que a assimilação das informações, o mundo pode se assemelhar a um amplo
mercado aos nossos olhos, em que as necessidades são prontamente atendidas, sem que haja o rigor da
singularidade dos desejos individuais. Para aqueles com maior poder aquisitivo, há um setor de
equipamentos que prometem felicidade e pertencimento a um grupo. A indústria farmacêutica se revela
cada vez mais promissora para aqueles que buscam soluções rápidas. Para os desesperados, há sempre
alguém disposto a assumir um papel de autoridade. Esse mercado não é um mercado qualquer, ele opera
com uma mão invisível que acolhe a todos.
Ainda nesse primeiro ponto de reflexão, é importante ponderar que a superficialidade não afaga as
necessidades afetivas, e é através dessa carência que se intensifica muitos dos conflitos, afinal, no limbo
da superficialidade não se constrói comprometimento afetivo. Para Baumann (2004, p. 65) “Sucedâneos
comercializados não podem substituir vínculos humanos. Em sua versão à venda, os vínculos se
transformam em mercadorias, ou seja, são transportados para um outro domínio, governado pelo mercado, e deixam de ser os tipos de vínculo capazes de satisfazer a necessidade de convívio e que só nesta podem ser concebidos e mantidos vivos”.
Em meio a essa transformação acelerada, o segundo ponto de reflexão sugere algo que outrora já
se configurava como um conflito, a recusa ao amadurecimento. Uma das importantes contribuições da
psicanálise é a noção de que o amadurecimento envolve o desenvolvimento de uma compreensão mais
profunda de si mesmo, a resolução de conflitos internos e a adaptação a novos estágios de
desenvolvimento psicológico. Nesse cenário, o amadurecimento que exige um aprofundamento dos
conflitos internos e da relação com o mundo, posiciona o indivíduo diante de um desafio ainda maior,
amadurecer sem que tenha meios para isso. Para Freud (1986, p. 15), “o ego é aquela parte do id que foi
modificada pela influência direta do mundo externo, além disso, o ego procura aplicar a influência do
mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina
irrestritamente no id, pelo princípio de realidade”

Contudo, não é de surpreender que na atualidade, nos deparemos com “falsos adultos”. Nas
prateleiras das redes sociais e nos vendedores, agora chamados de influencers, há muitas ideias prontas,
sem que haja um aprofundamento, ou para além disso, envolvimento afetivo. Nessas prateleiras se
encontram respostas vazias para os conflitos geopolíticos, não é necessário sentir a guerra ou a fome para se extrair um entendimento. O mito da meritocracia é muito conveniente para alguns, é um curativo na ferida narcísica do jovem investidor (financiado pelos pais). No entanto, o que acontece com essas
pessoas acostumadas a ideias prontas quando precisam lidar com situações que exigem verdadeira
capacidade de ação e reflexão, o que acontece quando o ego fica sem muletas?
Não é difícil imaginar que, da mesma forma como era no passado, quando as pessoas tinham que
colher frutas de árvores ou caçar aves para preparar suas refeições em fogões a lenha, as demandas
psicológicas também exigem esforço e dedicação. Receber um “não” de alguém amado pode ser mais
desafiador do que a busca por alimentos. Embora seja possível comprar refeições prontas, lidar com a
frustração amorosa requer um nível de habilidade e resiliência que não pode ser adquirido
instantaneamente.
Nesse sentido, numa trajetória de amadurecimento, as comodidades podem retardar o processo que nos capacita a enfrentar as adversidades e desilusões da vida, além de dificultar o exercício da
autenticidade. Portanto, é inegável que o adoecimento mental e transtornos como ansiedade, depressão,
burnout entre outros, estejam diretamente relacionados ao estilo de vida e com os obstáculos no
desenvolvimento da psiquê humana. Nossa mente não tem condições de acompanhar a velocidade das
mudanças na mesma medida que renunciamos àquilo que temos de mais autêntico.

Referência Bibliográfica:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2004. P. 65.
FREUD, S. O ego e o id (1923). In: FREUD, S. O ego e o id. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1986. p.15.
SIMON, R. (1986). Introdução à psicanálise – Melanie Klein. São Paulo: Epu.

Imagem:

“A transformação da sociedade”

Disponivel em <https://www.fatosdesconhecidos.com.br/imagens-que-te-farao-repensar-se-o-ser-humano-esta-evoluindo-mesmo/> Acesso em 27 de novembro de 2023

Texto de Pedro Alves dos Santos Neto, formado em psicologia pela Universidade Paulista (UNIP) no ano de 2017, pós-graduando em Teorias e Técnicas Psicanalíticas no IEP-RP. Atuando na área clínica com experiência em tratamento de dependência química.

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