Por: Ana Flávia de Oliveira Santos

O trabalho do sonho pede passagem. Travessia. E abrigo. Pode consistir de restos. Sejam eles diurnos e mesmo noturnos. É material de análise. Afinal, “Quem é o sonhador que sonha o sonho?”, indaga enigmaticamente Grotstein (2020).

Que diz do mistério da criação do sonho, que demanda um pensador. Em busca de sentido: um sonha-dor. Ainda que disfarçado, pois, deslocado, o conteúdo revela-dores. Realiza-dores de desejos?

Pois Freud (2019) foi mesmo um desbravador. Insistir em falar de sonho naqueles tempos (1900)! Inaugurando caminho. Conferindo ao sonho status de guardião do sono. Não só. Mas, da vida interior, um indício. Rastro. Ponto de partida? Não necessariamente destino. Fundamento da psicanálise. Comunicação e conexão consigo mesmo. Transmissão. Testemunha que é de si?

O sonho, então, como casa. Uma janela. Adentro? Pois se é verdade que o poeta precede o analista (Freud, 2015) – e melhor -, recorro à sensibilidade de Adélia Prado (2011, p. 37):

“O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes,
os caixões de janela se desprendem.
O que precisa nascer
aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.”¹

Poema cujo título é “Alvará de demolição”. Pois não haveria de o sonho autorizar deitar por terra o conhecido, rumo à vastidão? O não saber, o incognoscível, ainda que verdade. Da ordem do estranho. Que remete, pois, à casa. Por entre fissuras. Ou mesmo suturas.  Ruínas, talvez? Escombros! Soterramento… Demandando trabalho arqueológico. Haverá vestígios? Daquilo que parte. Morre? Seriam estes restos vestigiais? Também não daquilo que ainda precisa nascer?

Restando a recomendação de Leminski (2013, p. 123): “A vocês, eu deixo o sono. / O sonho, não! / Este eu mesmo carrego!”.

O sonho do qual se nasce. Também, o sonho que é parteira do devir.

“New house” é uma instalação da artista Lygia Pape (2000). Se diante de uma casa que desmorona ou uma casa que nasce dos escombros, depende do sonhar do observador.

_________________

¹Sob inspiração do reconhecimento de Adélia Prado, poetisa mineira da singeleza e do cotidiano.

FREUD, S. O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen (1907). In: FREUD, S. O delírio e os sonhos na Gradiva, análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos. Obras completas.Vol. 8. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Obras completas.Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

GROTSTEIN, J. S. Quem é o sonhador que sonha o sonho: um estudo de presenças psíquicas. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2013.

PRADO, A. A duração do dia. São Paulo: Editora Record, 2011.

× Como podemos ajudar?