A síndrome de Stendhal é também conhecida como síndrome de Florença, não apenas por ter sido identificada nessa localidade, mas principalmente por ser desencadeada pelas características desse lugar. Ela consiste em um conjunto de sintomas psicológicos e psicossomáticos que acomete turistas estrangeiros quando eles estão diante das belas obras de arte dessa cidade. Foi descrita pela primeira vez por Graziella Magherini (1990), que a ela atribuiu o nome de Síndrome de Stendhal em homenagem a esse escritor francês, por conta de um relato feito por ele em seu livro, Roma, Nápoles e Florença, sobre as sensações que experimentou ao visitar a Capela de Santa Croce. Stendhal (1826/1973) referiu ter sentido uma emoção que se aproximava de sensações celestes, teve arritmia, a impressão de que a vida desvanecia e passou a caminhar com medo de cair. Para ele foi um êxtase sublime.
Magherini (1990; 2007) descreveu que as perturbações apresentadas pelos pacientes eram de gravidade variável, como tonturas, taquicardia, palpitações, falta de ar, alucinações visuais e auditivas, desorientação, despersonalização, ataques de pânico, perda da identidade, exaustão e tentativas de destruir as obras de arte que despertavam esses desconfortos. Sua etiologia seria o produto de encontrar-se em uma cidade ou prédio que permite ao visitante maravilhar-se diante de trabalhos de arte do passado. Os sintomas duram entre dois e oito dias, sendo que em alguns casos os pacientes se recuperam bem após esse tempo, mas em outros é necessário hospitalização ou mesmo o repatriamento. Os distúrbios podem ser precipitados por obras de arte e/ou locais diversos de Florença: o quadro “Bacchus” de Caravagio, o Palácio de Bargello, a Capela Brancacci, obras de arte da Galleria degli Uffizi, o quadro “Arca de Noé” de Chagall, o quadro “Juízo Final” de Nardo de Sion, os afrescos de Beato Angelico, bem como simplesmente as ruas e a arquitetura da cidade. No entanto, uma obra mereceu atenção especial, a ponto de receber o status de um subtipo da síndrome de Stendhal: o Davi de Michelangelo. A chamada “Síndrome de Davi” envolve sintomas como sentimentos de prazer sexual e estético diante da escultura, mas também profunda inveja devido à sua perfeição física. Esses sentimentos provocam sérias comoções no paciente, que pode, além de tentar destruir a estátua, literalmente apaixonar-se por ela.
Apesar dessa síndrome ter sido descrita no início da década de 1990, relatos de perturbações diante de cidades históricas e artísticas já existiam bem antes disso. Além de Stendhal (1826/1973), o próprio Freud (1936/1976) narrou sentimentos de alienação e despersonalização após visitar a Acrópole de Atenas. Dostoievsky referiu paralisias e ausência quando se viu diante do quadro “Cristo morto no túmulo” de Hans Hobeins, na Suíça (PALACIOS-SÁNCHEZ et al., 2018). Jung (1949/1986), por sua vez, mencionou que, quando já era idoso, cancelou uma viagem para Roma, que desejou durante toda a sua vida, pelo temor de que o impacto emocional de conhecer antigas estruturas imperiais excedesse as suas capacidades de recepção.
A compreensão dessa síndrome foi objeto de duas abordagens: a neurofisiológica e a psicanalítica. A primeira remete os sintomas a uma overdose cultural que evoca uma reação autonômica anômala. Essa reação se basearia na ação dos ‘neurônios-espelho’, presentes no córtex pré-motor, que são ativados quando uma pessoa realiza uma ação ou observa outra realizando-a. Assim, a observação artística estimula mecanismos que imitam e encarnam emoções, ações ou sensações corporais.
Já a perspectiva psicanalítica é pouco sistematizada, estendendo-se por teorias de vários autores como Freud, Klein, Bion e Winnicott, mas sem haver consenso nesse assunto. De um modo bastante resumido, existe uma compreensão que concebe a obra de arte como capaz de romper defesas e fazer emergir aspectos inconscientes da história do indivíduo. Contudo, segundo Loureiro (2005), não são apenas conteúdos inconscientes e fantasias sexuais e agressivas que irrompem a barragem do recalcado, mas também existem referências à área do não-pensado, do irrepresentável; seria o contato com esta última que evocaria sentimentos persecutórios, de despersonalização e desrealização em alguns pacientes.
Do nosso ponto de vista, o contato com essa área do irrepresentável permitiria entender por que a maioria dos pacientes exibe sintomas de natureza psicótica ou psicossomática, mesmo aqueles que pareciam apresentar uma estrutura de personalidade neurótica. Tal hipótese remete à consideração dos processos de construção de símbolos, de conferir representação ao conteúdo psíquico que não foi mentalizado. As alucinações e as alterações psicossomáticas consistiriam assim em formas primárias de simbolização (BRUNN, 2014). Esse pressuposto vai ao encontro da compreensão de Milner (1950/2010) de que a função do artista seria a de produzir novos símbolos. Nessa perspectiva, o espectador da obra de arte, para compreender a sua mensagem, precisaria despir-se dos símbolos que carrega consigo para assimilar aqueles do artista; seria nesse momento que os sintomas afloram. Os fenômenos de desorientação e despersonalização poderiam ocorrer como parte desse processo, visto que o artista, ao pintar um quadro ou realizar uma escultura, precisa ‘tornar-se’ o objeto que cria, tornando diáfanas as fronteiras entre o eu e o não eu. Já o espectador, ao buscar compreender a intenção do artista, passaria pelo mesmo processo regressivo de indiferenciação eu – não eu. Isso explicaria o relato de muitos pacientes de desejar entrar nos quadros ou sentir que os personagens representados tinham vida e se relacionavam com eles. Nesse contexto, uma determinada qualidade de uma obra de arte específica, em uma pessoa em particular e em um momento peculiar, pode se tornar um “fato selecionado” (BION, 2004), passível de conferir um significado emotivo à obra e de iluminar algum aspecto da vida do paciente. Desse modo, as abordagens psicanalítica e neurofisiológica não seriam concorrentes mas complementares, visto que as bases necessárias a esse processo de fusão entre o artista/espectador e a obra estariam garantidas pelos neurônios-espelho.
Esse caminho para a compreensão da Síndrome de Stendhal parece-nos promissor, embora não esgote todos os vértices desse complexo fenômeno. Em todo caso, constitui uma alternativa interessante a levar em conta nessa empreitada.
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(*)Expresso os meus agradecimentos a Ana Valéria Guelli-Ribeiro, orientadora deste estudo.
REFERÊNCIAS:
BION, W. R. Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p.17-20.
BRUNN, A. Introduction. In: _______Formes primaires de symbolisation.
Paris: Dunod, 2014, p.1-10.
FREUD, S. (1936). Um distúrbio de memória na Acrópole. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 291-303.
JUNG, C.G. (1949). Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1986.
LOUREIRO, I. Notas sobre a fruição estética a partir de sua experiência-limite: a síndrome de Stendhal. Psychê – Ano IX, n. 16, p. 97-114, jul.-dez. 2005
MAGHERINI, G. Le syndrome de Stendhal: du Voyage dans les villes d’art. Éditions Sogedin Usher, 1990.
MAGHERINI, G. “Mi sono innamorato di una statua” Oltre la Sindrome di Stendhal. Firenze: Nicomp L. E., 2007.
MILNER, M. (1950). On not being able to paint. Oxfordshire : Routledge, 2010.
PALACIOS-SÁNCHEZ, L.; BOTERO-MENESES, J. S.; PACHÓN, R. P.; HERNÁNDEZ, L. B. P.; TRIANA-MELO, J. P. T.; RAMIREZ-RODRIQUEZ, S. Stendhal syndrome: a clinical and historical overview. Archives of neuropsychiatry, v. 76, n. 2, p. 120-123, 2018.
STENDHAL. (1826). Rome, Naples, Florence. In: ______. Voyages en Italie (textes établis, presentes et annotés par V. del Litto). Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1973.
WINNICOTT, D. W. (1971). O brincar: uma exposição teórica. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 59-77.